Daniel Silveira
Um dos personagens mais marcantes da história do rock mundial foi a invenção de um jovem tímido de Zanzibar (na costa da Tanzânia) que sonhava em se tornar uma “lenda” e que usava a afetação no palco como escudo para sua insegurança.
A descrição de Freddie Mercury, líder do Queen morto em 1991, é feita por Mark Blake, autor de Is This the Real Life? The Untold Story of Queen (É Esta a Vida Real? A história não contada do Queen, Da Capo Press, 432 págs., US$ 25), a recém-lançada biografia do grupo britânico que vendeu mais de 300 milhões de discos.
Segundo Blake, Mercury não era autêntico, mas o resultado da ambição de Farrokh Bulsara, nome verdadeiro do cantor. A atenção dada a seu personagem, diz Blake, fez com que Brian May e Roger Taylor, guitarrista e baterista da banda, ficassem ofuscados e não recebessem o devido crédito por sua contribuição no Queen.
Editor-chefe das revistas Mojo e Q, Blake tem 46 anos e é autor também de um livro sobre o Pink Floyd. Passou dois anos pesquisando e fez mais de cem entrevistas para publicar o livro sobre a banda.
Para ele, o Queen é fruto da era de ouro da cultura pop – e não teria espaço se surgisse nos dias atuais. Na virada da década de 1960 para os anos 70, defende, havia uma grande criatividade no ar, “uma época em que as coisas eram feitas pela primeira vez”, diz. David Bowie, Jimi Hendrix, Pink Floyd e Led Zeppelin foram algumas das bandas que explodiram naquela época, assim como o Queen, e que transformariam a cultura pop global.
Na cultura atual, diz Blake, a marca do Queen continua forte, e evidência disso é o fato de a personagem mais popular, Lady Gaga, ter tirado seu nome de uma música da banda (“Radio Gaga”).
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Blake concedeu por telefone à CULT.
CULT – Sua descrição do ambiente em que o Queen surgiu mostra uma realidade muito criativa para a música pop, com o apogeu de nomes cruciais, como David Bowie, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Pink Floyd. Qual a relevância desse momento, na virada da década de 1960 para os anos 70, para a cultura pop?
Mark Blake – Foi a era de ouro da cultura pop. Cada geração deixa sua marca, é verdade, mas, por causa das oportunidades e da criatividade daquela época, não é possível negar que foi um momento único. Foi uma época em que muitas coisas estavam sendo feitas pela primeira vez.
Foi também naquele momento que os álbuns passaram a se tornar mais relevantes, substituindo a importância dos singles. O Queen sempre teve singles, mas os grupos da época começavam a investir em grandes álbuns.
Um grupo como o Queen seria possível nos dias de hoje?
Não, a banda não teria existido se tentasse surgir agora. Acho que as gravadoras lançariam Mercury sozinho e, além disso, mexeriam muito na música. O Queen não teria liberdade para criar, como teve.
Nos anos 1970, as gravadoras ganharam muito dinheiro ao deixar as bandas fazerem aquilo que quisessem e se desenvolverem em seu próprio tempo – foi isso o que fez o Queen dar certo. Eles não tiveram nenhum grande sucesso até o terceiro ou quarto disco. Atualmente, a banda é deixada de lado pelas gravadoras se não tiver um grande sucesso até o segundo disco, no máximo. O Queen não sobreviveria se surgisse nos dias de hoje.
Quando relata o surgimento da banda, você diz que Jimi Hendrix teve muita influência sobre ela, especialmente sobre Mercury, mas dá a entender que ela acabou por ofuscar Hendrix. Qual o lugar do Queen na história do rock?
Há uma grande diferença no legado de Queen e de outros nomes importantes, como Hendrix. O Queen foi gerenciado por Jim Beach, que foi muito competente em fazer com que a banda ganhasse muito dinheiro. É por causa dele que a banda continua onipresente até hoje, décadas após a morte de Mercury.
O legado do Queen continua sendo construído, enquanto outras bandas já extintas ficaram presas ao passado. Até hoje, há uma estátua de Mercury no centro de Londres, como parte de um musical que leva o nome de uma música da banda (“We Will Rock You”).
Qual a influência do Queen sobre o pop e o rock atuais?
Pode-se ouvir sua influência em muito do rock e do pop de hoje em dia. O fato de um dos maiores nomes do pop atual ser Lady Gaga, que tirou seu nome de uma música do Queen, é uma demonstração muito clara disso. Mas também em sua sonoridade é possível detectar a influência da banda, filtrada ao longo dos anos. Os grupos atuais cresceram ouvindo Queen, e é impossível ignorar completamente isso.
Muita coisa mudou desde então na forma de produzir e consumir cultura. Tenho 46 anos e, quando era jovem, descobria novas bandas frequentando lojas de disco. Eu não sabia qual era a aparência dos músicos do Pink Floyd ou do Led Zeppelin, por exemplo, os grupos não apareciam na TV e não havia internet. Isso criava uma relação mais próxima com as bandas, com o sentimento de descoberta pessoal.
Hoje tudo está disponível, e é difícil manter qualquer coisa em segredo.
Antes de o Queen existir, quando Brian May e Roger Taylor tocavam em um grupo chamado Smile, eles abriam shows para o Pink Floyd, banda que foi tema de seu livro anterior. É possível comparar os dois grupos?
Apareceram mais ou menos na mesma época, mas são duas bandas completamente diferentes. Acho não ser possível ouvir influência do Pink Floyd na sonoridade do Queen, apesar de saber que Brian May é fã da banda.
Talvez se possa dizer que o Pink Floyd tinha um interesse mais musical, em criar algo de novo, enquanto o Queen, especialmente Mercury, estava mais interessado em receber atenção e se tornar famoso.
A morte de Mercury tornou-se um dos momentos mais marcantes da história do rock e também um símbolo da luta pelos direitos dos homossexuais e da luta contra o HIV. Qual a relevância histórica de Mercury?
Ele tornou-se relevante em muitas dessas coisas depois de morrer. É importante lembrar que, em vida, ele nunca defendeu nenhuma causa abertamente. Nunca falou sobre a defesa dos direitos dos homossexuais, por exemplo, ou nada assim.
A última vez que ele subiu ao palco com o Queen, ele mal tinha 40 anos. Nunca o vimos ficar velho, e não sabemos o que teria acontecido se ele ainda estivesse por aí. Teria sido interessante ver se ele teria aberto mais sua vida pessoal, defendido causas.
O senhor diz que, ainda adolescente, Mercury “previu” que viveria apenas 45 anos e que se transformaria em uma lenda do rock. O senhor também relata como ele passou de um jovem tímido de Zanzibar para um dos personagens mais espetaculares da cultura pop. Como isso foi possível?
Ele era muito ambicioso. Em todas as vezes em que conversei sobre isso com Brian May e Roger Taylor, eles sempre falavam sobre o quanto Mercury se transformou desde que o conheceram. Falam sobre a persona que inventou. Ele não tinha voz no começo da carreira, por exemplo, mas treinou tanto que acabou se tornando um grande cantor.
O que possuía desde o princípio, no palco, era uma grande confiança, apesar de ser tímido fora dele. Ele era um caso de pura ambição e autoconfiança.
Então ele não era autêntico, certo?
Não, não era autêntico. Claro que havia traços do Mercury real no personagem, mas o personagem era muito diferente de quem ele
realmente era.
Seu livro tenta creditar Brian May (guitarrista) e Roger Taylor (baterista) pelo sucesso da banda. Eles foram ofuscados pelo personagem de Mercury?
Eles foram muito importantes. Como artista-solo, Mercury nunca fez muito sucesso, assim como o resto da banda nunca fez muito sucesso em outros projetos musicais. A magia do Queen estava no que os quatro conseguiam fazer juntos.
Mas, como Freddie era um personagem gigantesco, acabou dominando a história, pois era a imagem dele que vendia a música.
Recentemente, os remanescentes do Queen juntaram-se com Paul Rodgers (vocalista do Bad Company e amigo histórico do Queen) para voltar a fazer shows. Pode-se chamar isso de Queen?
Eles são o Queen. O nome é deles e podem fazer o que quiserem. Entrevistei Roger Taylor sobre isso, e ele disse que seria bobagem não usar o nome da banda, pois isso ajudava a vender mais ingressos. Pessoalmente, vi alguns dos shows e acho que fizeram um bom trabalho, mas tenho dificuldade de ver o Queen com qualquer outro vocalista que não Mercury. Algumas coisas não funcionaram tão bem.
O senhor fez mais de cem entrevistas para escrever o livro. Como surgiu o projeto e como foi o trabalho de pesquisa?
Fui convidado pela editora. Havia entrevistado Roger Taylor e Brian May várias vezes e já tinha escrito muito sobre o Queen.
O diferencial foi que decidi ir atrás de pessoas que nunca haviam falado, como os amigos de infância de Mercury e todos os baixistas que passaram pelo Queen – até um que tocou apenas em dois shows. Passei cerca de dois anos pesquisando e escrevendo.
Seu livro começa com a apresentação do Queen no Live Aid, há 26 anos. Qual a relevância desse show para a banda?
Ele foi visto por muita gente em todo o mundo e teve um efeito galvanizador na carreira do Queen. Deu um forte impulso ao grupo, especialmente no Reino Unido. Até então, a banda cogitava parar por tempo indeterminado, e foi após aquele show que decidiram continuar juntos. O Live Aid tornou-se parte da cultura pop.
O tom de seu livro é um tanto impessoal. Foi intencional?
Não vivi a história do Queen. Assisti a shows, conhecia as músicas, mas não tinha como escrever com base no que eu sabia. Escrevi o livro sobre a história do Queen com base em depoimentos e entrevistas de pessoas que viveram aquela história. Dependia das memórias delas, então preferi ser objetivo.
Gosto muito do Queen. Cresci ouvindo suas músicas, tenho todos os seus discos. Mas não considero tudo o que gravaram fantástico – sou um fã crítico. É uma relação parecida com a que tenho com todas as bandas que amo, como Pink Floyd e Led Zeppelin.
Do que mais gosta e do que menos gosta do Queen?
O meu preferido é Sheer Heart Attack, embora não saiba dizer se é o melhor disco deles. Por outro lado, eu teria preferido se não tivessem lançado Made in Heaven. Seria melhor se a história tivesse acabado com a morte de Mercury.
Trecho – esquadrão da morte no Morumbi “Dois outros shows tinham sido confirmados no Estádio do Morumbi, em São Paulo, para 20 e 21 de março [de 1981]. A banda levantou acampamento no Rio, enquanto a equipe começou a tarefa no estilo Fitzcarraldo de transportar mais de 100 toneladas de equipamentos para o Brasil por estrada e através da selva. Na fronteira brasileira, as autoridades da alfândega estavam decididas a examinar cada peça (um processo que teria exigido cancelar os dois shows). De algum modo se fechou um acordo, supostamente envolvendo dólares, e os caminhões puderam passar, faltando apenas 36 horas para a primeira noite. Em São Paulo, o guarda de segurança pessoal de John Deacon se apresentou com a informação de que tinha matado mais de 200 pessoas. Haviam designado para o Queen guarda-costas tirados do infame ‘Esquadrão da Morte’ brasileiro. ‘Era a polícia linha-dura que realmente matava pessoas a um estalar de dedos”, lembrou Mercury. ‘Alguém tirou uma foto de John com o ‘Dr. Morte’, diz Peter Hince. ‘Ali vemos Deakey e aquele sujeito com uma arma enfiada na calça.’ Nos bastidores antes da primeira noite no Morumbi, o destemido Gerry Stickells finalmente quebrou. Furioso com a falta de um telefone que funcionasse, ele arrancou um da parede e o atirou pela janela. A polícia foi chamada e o Queen foi obrigado a permanecer nos camarins até minutos antes do show. Afinal, apresentaram-se para mais de 250 mil pessoas em duas noites no Brasil. Juntamente com seu próprio equipamento, o Queen recebeu muitos refletores da organização do show. Ao examinar de perto, viram que tinham estampadas as palavras ‘Earth, Wind & Fire’, e tinham sido apreendidos durante a turnê da banda um ano antes. Temendo que o equipamento do Queen fosse confiscado, a equipe tomou medidas de emergência. Enquanto o pessoal do estádio estava ocupado pegando a grama artificial da banda, a equipe desmontou o palco e conseguiu transportar todo o equipamento para o aeroporto. Trecho de Is This the Real Life? |
Trecho – concorrência acirrada
“Assim como o single, o álbum [Queen, de 1973] vendeu lentamente e chegou ao 32º lugar no Reino Unido. Algumas resenhas foram positivas. ‘Uma estreia pujante, dinâmica’, afirmou a revista underground Time Out. Outras nem tanto. ‘Um balde de urina insípida’, disse a New Musical Express, deflagrando um ressentimento da imprensa musical que duraria por toda a carreira do Queen. Aliviado por finalmente ter lançado um disco, o Queen agora lutava contra o medo de que talvez fosse antiquado. ‘Nós tocávamos glam rock antes de The Sweet e [David] Bowie’, disse Brian May à Melody Maker. “Estávamos preocupados porque talvez tivéssemos chegado tarde demais.” A concorrência era acirrada. Meninos de aparência andrógina em roupas exóticas tinham se tornado a regra no rock e no pop. Naquela primavera Bowie havia lançado Aladdin Sane e o Roxy Music apresentou seu segundo disco, For Your Pleasure. O Roxy, com seus boás de plumas e pedigree de escola de arte, tinha feito sua estreia ao vivo um ano antes e já tinha desfrutado um single e um álbum de sucesso. ‘Não queríamos que as pessoas pensassem que estávamos pegando carona neles’, insistiu May
Trecho de Is This the Real Life?
Fonte: http://revistacult.uol.com.br
Dica de: Roberto Mercury