O grande enigma chamado Freddie Mercury
CAROLINE SULLIVAN
DO “GUARDIAN”
Em novembro de 1991, dias antes de morrer, Freddie Mercury teve uma reunião com seu empresário para discutir a melhor maneira de revelar ao mundo que tinha Aids. Quando eles chegaram a um acordo sobre os termos do anúncio público que seria feito, o cantor de 45 anos começou a perguntar-se como seria lembrado. “Você pode fazer o que quiser com minha música, mas não me torne desinteressante”, ele pediu.
Seu desejo foi realizado. Vinte e um anos mais tarde, Mercury ainda é o astro de rock dos astros do rock, exercendo magnetismo suficiente para conquistar novos fãs jovens demais para se recordarem dele. Um filme biográfico sobre ele está em preparação. Será estrelado por Sacha Baron Cohen, o ator britânico que interpretou “Borat”, “Bruno” e, mais recentemente, ” O Ditador”.
Em outubro vai estreia um novo documentário da BBC, “The Great Pretender”, que relata seus últimos cinco anos de vida. Além disso, acaba de ser relançado seu último álbum solo, “Barcelona”, um disco semioperístico que ele gravou com a mezzo-soprano catalã Montserrat Caballé.
No programa da BBC, cujo título é derivado de um single solo de Mercury, de 1987, o cantor é tudo, menos desinteressante. Arredio, exasperador e carismático, sim, mas jamais maçante. Seu lado hedonista, que culminou com uma festa notória de 39 anos em Munique, foi documentado: Mercury é o centro das atenções, enquanto homens vestidos de mulher andam em torno dele e um convidado dança nu.
Isso pode soar relativamente moderado, mas parece que as cenas de libertinagem explícita aconteceram longe das câmeras. O ex-empresário John Reid se recordou do dia como “os últimos dias de Berlim, o último hurra”, depois do qual Mercury acomodou-se em algo que se aproximava de uma vida tranquila. Mas também o vemos com os nervos em frangalhos diante da ideia de trabalhar com Montserrat Caballé, cuja voz ele considerava “a melhor do mundo”.
Há também novas entrevistas com Caballé, com integrantes do Queen e uma série de amigos. Todos concordam em relação a um ponto: Freddie Mercury era um homem meticuloso e generoso cuja vida privada estava totalmente fechada a qualquer pessoa que não fizesse parte de seu círculo íntimo. Para alguém que vendeu algo como 150 milhões de álbuns, ele era notavelmente difícil de conhecer e entender.
GRANDE TRUNFO
Rhys Thomas, o diretor de “The Great Pretender”, diz que essa impenetrabilidade era o grande trunfo de Mercury. “Ele tinha muitas camadas. Era difícil de ser captado.” Thomas cita como exemplo o pouco caso com que Mercury tratou sua doença. “Ele falou ao Queen sobre a doença e depois nunca mais a mencionou. Dois dias antes de ele morrer, Jim Beach (o empresário da banda) foi à casa dele. Freddie tinha parado de tomar seus remédios e tinha ficado cego; ele estava realmente mal. Mas a única coisa da qual quis falar foi sobre a música.”
“[O guitarrista] Brian May estava prestes a lançar um single solo, e Jim estava dizendo que ele devia adiar o lançamento. Mas Freddie falou: ‘Diga a ele para lançar o single. Eu posso morrer a qualquer momento, e que publicidade melhor que essa ele poderia ter?’.” (May realmente lançou o disco, 15 dias depois de Mercury morrer. Chegou ao sexto lugar nas paradas.)
Mercury, cujo nome de nascimento era Farrokh Bulsara, era um artista intensamente físico que dominava cada centímetro do palco. Diante de 70 mil fãs, em estádios em todo o mundo, o cantor intrinsecamente tímido perdia qualquer traço de inibição.
Sacha Baron Cohen não terá um trabalho fácil: ele pode se parecer fisicamente com Mercury –embora seja 18cm mais alto que o cantor, que media 1,74m–, mas será que consegue comandar uma plateia como fazia Freddie? Rhys Thomas ri: “Falei com ele na semana passada e ele está realmente adorando a ideia. Está até tentando aprender a cantar como Freddie, está ensaiando as canções.”
É uma prova de espírito esportivo por parte de Baron Cohen: a voz de Freddie Mercury era uma força da natureza, com o poder de um furacão. Fato interessante, porém, é que ela não era sua voz “real”, ou, pelo menos, é o que diz Montserrat Caballé. Falando ao telefone de Barcelona, ela revela: “Ele tinha voz de barítono. Propus a ele certo dia ‘vamos fazer um pequeno duo de barítono e soprano’, e ele disse ‘não, não, meus fãs só me conhecem como cantor de rock e não vão reconhecer minha voz se eu cantar como barítono’. Então não o convenci a fazer aquilo.”
Mas ele poderia ter acabado por concordar. Caballé acredita que, se Mercury tivesse vivido, teria mergulhado mais fundo na música clássica que o cativou mais e mais em seus últimos anos de vida. “Falávamos em fazer alguma coisa juntos, algo mais clássico. Também falamos em gravar ‘O Fantasma da Ópera’, do qual ele gostava muito. É uma coisa comovente. Eu sabia que ele estava de cama, muito fraco, e quis lhe fazer uma surpresa, gravando ‘o Fantasma’. Telefonei para ele, pus o som perto do telefone e toquei o disco. Ele ficou muito feliz. Falou ‘obrigado, Montsy, eu queria muito ouvir isso’. E essa foi a última vez que falei com ele.”
O letrista Tim Rice, que co-escreveu duas faixas do álbum “Barcelona”, diz que, mesmo assim, Freddie Mercury nunca teria abandonado a banda Queen, que chegou a nº 1 em 1989 com o álbum “The Miracle”, repetindo o feito com “Innuendo” em fevereiro de 1991. “Ele teria continuado a trabalhar com o Queen, mas também estávamos falando em fazer um musical juntos”, diz Rice. “O trágico é que Freddie, se tivesse vivido, poderia ter se tornado um grande compositor de trabalhos teatrais ou até mesmo de ópera. Ele sempre queria aprender mais sobre a música.”
Peter Freestone, que foi assistente pessoal de Mercury durante muito tempo e hoje trabalha como ativista anti-Aids em Praga, concorda. Mesmo quando Freddie Mercury adoeceu, ele viveu para a música. “[Depois de contrair o HIV] ele jamais passou tempo falando comigo, perguntando-se onde ele teria pegado o vírus, em que país, que cidade. Era um fato, estava acontecendo. Ele sabia que ia morrer, então por que perder tempo lamentando o fato? Mas havia uma coisa que ele lamentou no final: que ele ainda tinha música para criar.”
BENEFÍCIOS ADICIONAIS
O estilo de vida luxuoso, a casa em Kensington mobiliada com antiguidades japonesas, a riqueza –tudo isso não passava de benefícios adicionais. O consenso é que Mercury teria voltado a cantar com o Queen e, ao mesmo tempo, formado uma carreira paralela na música clássica.
Os últimos quatro anos de sua vida foram marcados por uma explosão de criatividade sem precedentes, que incluiu não apenas o projeto “Barcelona” e dois álbuns de sucessos, mas também a gravação de várias faixas para “Made in Heaven”, álbum concluído postumamente e lançado em 1995. “Acho que ele não teve ambições que ficaram sem se realizar”, diz Freestone. “Ele se considerava uma pessoa de sorte por ter podido fazer o que fez.”
“Barcelona” foi um dos trabalhos que lhe deu mais orgulho –mas o que ele teria pensado da versão relançada, que substitui os arranjos originais de Mercury, com teclado, por uma orquestra de 80 instrumentos? “Ele teria adorado, teria ficado assombrado. Com a orquestra, os clímaces são muito mais genuínos. O mais perto que eu o vi chegar de chorar foi quando Monteserrat gravou as primeiras faixas vocais para a canção ‘Barcelona’. Havia lágrimas em seus olhos.”
Mas por que ainda há tanto interesse por Freddie Mercury? Seria o fato de ele ser tão avesso à publicidade, como diz Rhys Thomas? Com Mercury, a cortina subiu e depois desceu, e nenhum de nós ficou sabendo mais sobre sua vida real. Ele não viveu até a era da internet; logo, nunca teve a oportunidade de estragar a aura de mistério que o cercava, tuitando e compartilhando tudo. Os roqueiros do século 21 estão nas mãos de seus fãs, são obrigados a expor suas vidas ao escrutínio público. Com Mercury, havia uma senhoril ausência de detalhes.
“Se ele estivesse vivo hoje, iam querer que fosse para ‘Dancing with the Stars’, ‘The X-Factor’ ou sei lá que outros programas”, diz Freestone. “Ele odiaria isso. Hoje em dia as vidas das pessoas são livros abertos. Existe alguma coisa sobre Lady Gaga que não saibamos? Mas a música do Queen é atemporal. Ontem eu saí e assisti a uma banda fazendo covers do Queen, e não havia uma única pessoa na plateia que poderia ter visto Freddie ao vivo –todas eram jovens demais. Mas todos estavam dançando e cantando a letra. Freddie Mercury era enigmático. Tudo o que ele fazia suscitava perguntas que ele não respondia.”
Enquanto isso, os herdeiros de Mercury não param de enriquecer. O musical “We Will Rock You”, baseado nas canções do Queen, comemorou seu 10º aniversário este ano e tem produções sendo encenadas em todo o mundo. E o próprio Queen continua a fazer turnês, com outros cantores no lugar de Mercury. Ironicamente, diz Freestone, o próprio Freddie Mercury talvez ficasse consternado com o fato de o Queen continuar existindo. “Ele odiava a ideia de bandas voltarem juntas. Nada disso!”
Tradução de CLARA ALLAIN.
Fonte: www.folha.uol.com.br
Dica de: Roberto Mercury