Por Doctor Robert
O ano era 1977. O Queen já havia gravado seu nome mundialmente entre as grandes bandas de rock desde que “Bohemian Rhapsody” tomou de assalto as paradas de sucesso cerca de dois anos antes. Após mais duas turnês mundiais, o quarteto inglês vinha tocando em espaços cada vez maiores, com ingressos cada vez mais disputados, inclusive no Japão e no tão sonhado mercado norte-americano, onde a abertura de sua última excursão ficou a cargo do Thin Lizzy – e cujo concerto no lendário Madison Square Garden teve a venda total de assentos em poucos minutos…
Num dos concertos desta mesma turnê, só que em Birmingham, na Inglaterra, os músicos foram pegos de surpresa após o final do show quando a plateia começou a cantar em coro para a banda “You’ll Never Walk Alone”, tema de um antigo musical chamado “Carrossel”. Aquilo ficou na memória dos músicos, e quando o Queen voltou ao estúdio para gravar seu novo álbum, Brian May e Freddie Mercury se propuseram a compor um tema para ser entoado junto ao público no encerramento de seus shows, uma espécie de “hino” para celebrarem juntos ao final das apresentações. Carregando esse sentimento e mais as experiências junto às viagens pela América e Europa, há quarenta anos atrás nascia um divisor de águas na carreira do Queen, o magistral “News Of The World”.
Até então em sua discografia o Queen vinha mantendo seu padrão musical envolvendo instrumentais intrincados, trabalhos vocais extremamente burilados, que assim como as guitarras eram gravados em diversas camadas. Desta vez, porém, a banda optou por uma musicalidade mais direta, sem deixar de passear por diversos ritmos e influências diferentes: Freddie vinha com arranjos de piano com acordes de jazz, Brian deixando claro em sua guitarra o quanto estava encantado com o blues norte-americano, o baterista Roger Taylor flertando com uma pegada ainda mais agressiva e o baixista John Deacon apresentando composições suaves e delicadas. Assim como no trabalho anterior (“A Day At The Races”) dispensaram a presença de um produtor para o disco, mas contando mais uma vez com os préstimos do então engenheiro de som Mike Stone (chamado por Brian de “gênio dos estúdios”), creditado como co-produtor – Stone posteriormente viria a produzir depois álbuns para o Journey, Asia, Whitesnake, entre outros.
Voltando à história do “hino para as massas”, “News Of The World” abre com a dobradinha “We Will Rock You” e “We Are The Champions”, que dispensam qualquer tipo de apresentação. Duas músicas que parecem se complementar tão perfeitamente que fica meio que impossível ouvir uma sem se lembrar da outra. E elas foram trabalhadas para que fosse assim mesmo: foram lançadas juntas, como lado A e B em single, foram compostas para serem o encerramento do show da banda (e desde sempre executadas assim), de modo a envolver a plateia e colocar todos para cantarem em coro. Até as rádios na época as executavam em seguida, sem interrupção. O que a banda mal podia imaginar era a dimensão que isso iria tomar, com ambas as faixas transcendendo as margens do rock, da música em geral, e se tornarem hinos também do esporte. Até hoje arenas ao redor do mundo das mais diversas modalidades esportivas ecoam a primeira em seus intervalos, envolvendo as torcidas, e a segunda como a celebração dos vencedores dos torneios nas finais.
Em “We Will Rock You” nenhum instrumento além da guitarra de Brian é tocado. A banda gravou a si mesma batendo os pés e as palmas das mãos diversas vezes, fazendo sobreposições e acrescentando delays e overdubs até chegarem à sonoridade que queriam, dando a impressão de uma multidão executando os sons. Os delays foram calculados em proporção de números primos, numa técnica de estúdio conhecida como “reverberação não-harmônica” e o resultado final foi regravado em loop na fita master, repetindo a batida por exatos 2 minutos, quando se encerra o solo de guitarra. Uma versão com diferentes arranjos, executada por toda a banda (conhecida como “Fast Version”) também foi gravada, e seria usada na abertura dos shows pelas próximas quatro turnês do Queen. Essa versão de estúdio ficou de fora do álbum original, tendo sido lançada apenas em suas reedições remasterizadas em CDs (e antes disso na coletânea “Best Of The Best – King Biscuit Flower Hour”, do extinto programa de rádio King Biscuit, da estação americana D.I.R.).
Embora Freddie Mercury houvesse dito algumas vezes que “We Are The Champions” já tinha sua estrutura escrita anos antes, ela só foi de fato concluída durante as gravações de 1977, evocando mais uma vez o sentimento da “plateia levantando as mãos e cantando” nos shows. Com vários acordes de jazz em seu piano (por incrível que pareça, Freddie se considerava um pianista horrível) e uma forte carga emocional nos vocais, é com certeza uma das performances mais marcantes do frontman em sua carreira, com os demais músicos o acompanhando com a sutileza e elegância necessárias.
Porém resumir “News Of The World” a apenas essas duas faixas seria um pecado mortal. O álbum segue com uma pancada na boca do estômago chamada “Sheer Heart Attack”, cortesia do baterista Roger Taylor, composta originalmente para o álbum de mesmo nome. Segundo o próprio autor, inúmeros fatores influenciaram para que a faixa fosse deixada de lado, inacabada. Mas com a explosão do movimento punk no período, parecia ser o cenário perfeito para dar um “cala a boca” naqueles que desdenhavam do poder de fogo do quarteto, que era um dos alvos preferidos dos seguidores de Sex Pistols e afins – a letra da música, aliás, dá umas boas alfinetadas nos punks: “There’s a lot of space between your ears” (“há muito espaço (vazio) entre suas orelhas”); “I feel so inarticulate” (“me sinto tão inarticulado”)… Roger assume quase toda a instrumentação aqui: bateria, baixo e guitarra-base (os pequenos solos que a costuram são de Brian), e chegou a cantar na versão demo, mas na gravação final a banda acabou optando por Freddie.
“All Dead, All Dead” traz um pouco de quietude e mansidão após o rolo compressor da faixa anterior, com Brian cantando sobre a inconformidade da separação pela morte, e dividindo o piano com Freddie, fazendo uma bela dobradinha com “Spread Your Wings”, uma das mais belas composições do calado baixista John Deacon. Aqui o show novamente é de Freddie, soltando sua voz e passeando pelo piano enquanto canta a história de Sammy, um jovem solitário e sonhador, que trabalha na limpeza de um bar, desdenhado pelo seu patrão e encorajado pelo narrador a seguir suas aspirações. Brian também se destaca, com um belíssimo solo, que costumava se estender ao vivo (como pode ser conferido no álbum “Live Killers”).
“Fight From The Inside” é outra ótima composição de Roger Taylor, que fecha o lado A do vinil. Aqui ele assume mais uma vez o baixo e a guitarra-base, além da bateria e dos vocais principais. Curiosamente seu riff de guitarra inicial é citado por Slash como um de seus favoritos em todos os tempos. O único outro membro a participar desta gravação foi Brian, com a adição de algumas guitarras.
No lado B o Queen expandiu ainda mais a sua diversidade rítmica do play. E, junto a isso, Freddie e Brian, mais especificamente, trouxeram à tona um pouco do que experimentaram nas noites na estrada. Em “Get Down, Make Love”, como o próprio nome sugere, Mercury explora a temática sexual que voltaria a abordar depois com menos sucesso em “Body Language”, do controverso “Hot Space”. Os efeitos sonoros da faixa ficaram a cargo da guitarra Red Special de Brian May conectada a diversos pedais (mais notadamente um Electroharmonix Frequency Analyzer) e a um antológico Eventide Harmonizer, processador de áudio que virou febre naquela década. Foi mais uma música a permanecer no setlist fixo da banda, desde seu lançamento até a turnê do já citado “Hot Space”.
Brian traduziu suas noitadas no campo musical compondo um blues despretensioso em “Sleeping On The Sidewalk”, onde ele também assume os vocais principais, contando a história de um trompetista de rua descoberto, contratado e explorado pela gravadora e empresários. Consta que a faixa foi gravada “ao vivo” em estúdio, com os músicos tocando juntos em apenas um take. Embora tenham realizado outras gravações, prevaleceu a primeira, sem overdubs no instrumental (apenas o vocal foi regravado).
John Deacon aparece com mais uma composição, a semi-acústica “Who Needs You”, onde ele e Brian tocam seus violões com um certo acento latino-hispânico. Brincando com o estéreo, como os Beatles costumavam fazer, concentraram os vocais de Freddie apenas no canal de áudio direito e a guitarra solo de Brian no canal da esquerda. Roger acrescenta a percussão, com o auxílio de Brian nas maracas e Freddie no cowbell. Um momento mais descontraído e divertido.
E finalmente chegamos a uma das faixas mais subestimadas não só do álbum, mas também da carreira toda do Queen. “It’s Late”, uma pérola de seis minutos e meio de Brian May, traz uma abordagem lírica teatral dividida em três atos, mostrando alguém dividido entre a mulher que ama e a amante – intercalando seus diálogos com ambas nas três divisões. Se o vocal de Freddie Mercury é um show à parte, não podemos ficar indiferentes ao trabalho de Brian na guitarra, novamente com uma pegada calcada no blues e com um solo antológico cheio de bends e tappings, inspirado, segundo o próprio, em Billy Gibbons do ZZ Top e Rocky Athas, guitarrista texano de quem May se tornou grande fã. Uma pequena obra de arte…
Finalizando a viagem musical, a depressão toma conta de Freddie, contando como se sentia após se esbaldar na noite e voltar para casa solitário. Esse sentimento se traduz em “My Melancholy Blues”, que, apesar do nome, remete às baladas standards de jazz. Sem nenhuma guitarras, o lamento pessoal do vocalista é acompanhado apenas por seu piano, um contrabaixo suave de Deacon e uma bateria sutil de Taylor. O clima “pós-festa com ressaca” torna a faixa perfeita para encerrar este grande trabalho, que foi o disco que catapultou o Queen ao estrelato na América do Norte, tendo sido quatro vezes platina somente por lá, e se tornando seu álbum mais vendido no mundo até então.
Mas não terminamos ainda… Seria injustiça encerrar o texto sem mencionar a capa antológica desenhada pelo artista Frank Kelly Freas. A ilustração foi um remake de uma original feita por ele mesmo para a capa da revista de Ficção Científica “Astounding Science Fiction”, em outubro de 1953, cuja cópia Roger Taylor tinha em sua casa. Ao invés de segurar apenas um homem morto, como no original, agora o robô gigante segurava os próprios membros do Queen mortos, com Taylor e Deacon caindo e May e Mercury ainda na sua mão. Mais uma curiosidade: reza a lenda que Freas não conhecia a banda (não era fã de rock, apenas ouvia música clássica) e só aceitou a empreitada após ouvir algumas músicas do grupo, que ele classificou como intrigantes… Por fim, uma homenagem satírica à capa e ao Queen foi feita pela série animada “Family Guy” em 2012, no episódio “Killer Queen”, onde Stewie Griffin fica traumatizado ao ver a ilustração.
Queen – News Of The World (1977)
Produzido por Queen – Co-produzido por Mike Stone
Freddie Mercury – vocais, piano, cowbell em “Who Needs You”
Brian May – guitarras, violões, backing vocals, vocais principais em “All Dead, All Dead” e “Sleeping on the Sidewalk”, maracas em “Who Needs You”
Roger Taylor – bateria, percussão, backing vocals, vocais principais em “Fight from the Inside”, guitarra-base e baixo em “Fight from the Inside” e “Sheer Heart Attack”
John Deacon – baixo, violões em “Who Needs You”