Há sensivelmente dois anos, no aniversário da morte de Kurt Cobain, foi-nos apresentada uma nova música dos Nirvana criada por inteligência artificial (IA) — “Drowned In The Sun”. Na altura, a reação generalizada foi que a música soava, na melhor das hipóteses, como uma cópia barata dos Nirvana. Era evidente que a IA não podia substituir o rasgo criativo de uma banda de humanos a criar a música. Dois anos volvidos, estamos face ao ChatGPT, uma ferramenta de IA que aterrou entre nós como um ovni cheio de aliens que não conseguimos ver, mas que vai revolucionar a forma como vivemos. Só ainda não sabemos exatamente como.
Quando olho para o ChatGPT e penso no impacto que pode ter, em particular nas profissões mais criativas, lembro-me da entrevista que David Bowie deu à BBC em 1999, onde descreveu o advento da internet como “uma forma de vida alienígena, que vai mudar completamente as nossas vidas”. O jornalista reagiu à aparente hipérbole de Bowie com escárnio, duvidando do impacto que a world wide web, “apenas mais uma ferramenta”, iria ter. E olhem para nós, hoje, 100 por cento dependentes da net para tudo — das redes sociais (que vieram para nos aproximar, mas em vez disso vilipendiaram a interação humana) até à realização das mais ínfimas tarefas como ir ao banco (quando foi a última vez que foram a um balcão?) — incluindo, obviamente, para ouvir música.
A repercussão da inteligência artificial será sentida mais rapidamente pelos jornalistas, escritores, tradutores, comediantes, guionistas e outros produtores de conteúdos e escrita criativa. A rapidez com que o ChatGPT produz um texto sobre qualquer tópico é aterradora. Pedi-lhe para escrever um rap sobre a NiT e dois segundos depois, voilá (podem ler o resultado no final do texto). Mais alarmante será o impacto na vida dos estudantes, professores e de todo o sistema de ensino. Vai ser preciso repensar a relação dos estudantes com a tecnologia, muito além da clássica proibição. É preciso perceber que, para o bem e para o mal, estas ferramentas vieram para ficar. E vão infiltrar-se em todos os campos, incluindo o da música.
A primeira pergunta que fiz ao ChatGPT foi “és capaz de compor canções?”. A resposta foi negativa, mas ele (ela?) explicou porquê. A conversa foi em inglês, e a tradução é minha: “Sou um modelo linguístico de IA, posso gerar texto com base em padrões e regras que aprendi com a vasta quantidade de informação com que fui treinado. Isto inclui gerar texto que se parece com poemas e letras de músicas. Porém, compor uma canção requer não só texto, como também composição musical e arranjos, algo que vai além das minhas capacidades. Existem outras ferramentas de IA que podem ajudar a compôr músicas, mas ainda estão em fase inicial de desenvolvimento e podem não conseguir replicar de forma exata a criatividade e emoção que um humano imprime ao seu trabalho”.
Notem que a resposta refere que “ainda não” compõe (o que veremos mais à frente que não é totalmente verdade), mas dá a entender que caminhamos para lá. Por outro lado, admite que escreve letras, pelo que lancei novo desafio ao ChatGPT: “Podes compor a letra para um novo tema do Freddie Mercury, se ele fosse vivo?”. A resposta foi afirmativa. Segundo a ferramenta, a música que Freddie escreveria em 2023 chama-se, imaginem, “I’m Alive”.
Versos: “In the darkness of the night, I feel the fire burn so bright / A passion deep inside, it’s calling out to me / I hear the rhythm of the beat, it’s moving to my feet / I close my eyes and I feel the sound, it’s setting my heart free”
Refrão: “I’m alive, I’m alive, the music’s taking me higher / I’m alive, I’m alive, the beat’s my heart’s desire / I’m alive, I’m alive, I feel the power of the sound / I’m alive, I’m alive, and I won’t let it bring me down”
Verso 2: “I see the world around me, it’s moving to the beat / People dancing to the sound it’s like a symphony / I feel the energy in the air, it’s like a wave of light / I’m caught up in the moment, it’s like a dream in sight”
Refrão
Ponte: “The music’s like a drug, it’s running through my veins / I’m addicted to the beat, it’s driving me insane / I’ll never let it go, it’s like a part of me / The music’s in my soul and it’s setting me free”
Refrão
Outro: I”‘m alive, I’m alive, I’m alive…”
Notem como o bot percebe a estrutura e processa o espólio da lírica dos vocalista dos Queen e daí tenta produzir algo de original. O que fazer disto? Nada. A letra assemelha-se a um pastiche de uma música dos Queen, mas é demasiado explicativo, e desprovido da nuance que fez de Mercury, o Freddie Mercury. O desafio seguinte foi compor a lírica de um tema novo do John Lennon, mas o resultado foi ainda mais ridículo. Deixo-vos apenas o refrão:
“All we need is love, love is all we need / Let’s come together, and plant the seed / All we need is love, love is all we need / Let’s make a change, let’s plant the seed”
Quem sabe alguma coisa acerca de Lennon e da sua relação com o passado, percebe que o cantor jamais escreveria algo a roçar a paródia como o que acabaram de ler. É evidente que esta ferramenta de inteligência artificial ainda está a dar os primeiros passos no que diz respeito a emular outros artistas. Mas a estrutura está toda lá. Para quem quer compor uma música, basta dar as instruções sobre a temática e o mood, e num espaço de segundos, tem metade do trabalho feito. Mais: se fizerem as perguntas certas, podem até ter todo o trabalho feito.
Já sabia que não fazia canções completas, mas se tinha a letra, só faltava a melodia. Voltei então à carga com a música do Freddie Mercury. Desta vez, perguntei se me podia escrever a melodia para uma canção do Freddie e, surpresa, o ChatGPT anuiu. Se tiverem um piano à mão, podem experimentar:
Verso 1: Gm7 — C7 — Fmaj7 — Bbmaj7
Refrão: Eb — Bb/D — Cm — Abmaj7
Ponte: Fm — Bbm — Ab — Eb/G — G7 — Cm — Fm — Bbm — Eb — Ab
Após uma nega inicial, conseguimos extrair a tentativa de uma música nova do Freddie Mercury em 2023. Mesmo sem a opção de reprodução final, dá para ter uma ideia do quão potente é esta ferramenta. Será suficiente para nos dar o próximo John, ou o próximo Freddie? Claro que não. Mas para o mainstream, chega e sobra. Não é que o Top 40 de hoje em dia não pareça que tenha sido produzido com recurso a inteligência artificial. O “mesmismo” já está instalado na corrente dominante há muitos anos, por isso a transição não será chocante.
Quem irá sentir mais a chegada da IA serão os DJs e produtores de reggaeton, que convergiram no tal mesmismo. As ferramentas estarão agora à disposição de ainda mais gente. Os próprios gigantes do mainstream Max Martin, Beyoncé, ou Taylor Swift, terão de estar mais atentos. Aliás, não será difícil prever que muitos destes compositores comecem a recorrer à IA para os auxiliar. Quanto às bandas de humanos, com instrumentos gravados ao vivo, serão cada vez mais uma coisa de nicho, tipo vinil na era do streaming.
O impacto da inteligência artificial na música será gigantesco, provavelmente só comparável à introdução dos sintetizadores nos anos 70. As funcionalidades do ChatGPT ainda são limitadas neste campo, mas outras ferramentas de IA se seguirão. O Top 40 estará ao alcance de todos.
P.S.: O rap da NiT, como prometido:
“Yeah, yeah, yo
Listen up, let me tell you ‘bout a site
That’s bringing Portuguese lifestyle to light
NiT, it’s the name you gotta know
From food to fashion, they got the flow
They’re serving up the latest news
On everything you gotta choose
From the hottest restaurants in town
To the newest trends that are going down
You wanna know what’s good to eat?
NiT’s got the complete deets
They’ll tell you where to find the best food
And leave you in a Portuguese mood
Fashion, beauty, and lifestyle too
NiT knows what’s new
They’ll keep you in the loop
And have you feeling like a fashion troop
And if you’re looking for some fun
NiT’s got you on the run
They’ll give you tips on where to go
And make sure your night’s a show
So if you wanna keep it real
And live the Portuguese appeal
NiT’s the site to see
They’ll keep you up with the scene, guaranteed.”
Fonte: https://www.nit.pt